31 Janeiro, 2017
Alguns dias após o serviço que coordena ter sido alvo de críticas, Sérgio Gomes justifica, em entrevista ao Notícias ao Minuto, a importância da linha Saúde 24. “Descongestiona os serviços de urgência” e permite poupar muitos milhões por ano, garante o enfermeiro, reforçando os benefícios para o utente.


Dentro de meio ano, a linha Saúde 24 será substituída pelo Centro de Contacto do SNS. Falámos com o coordenador, Sérgio Gomes, para perceber o que vai mudar. Qual é, afinal, a importância do serviço de teleassistência que retira milhares de pessoas das urgências todos os anos?

“Quem nos liga tem oito vezes mais probabilidade de ser atendido nas primeiras três horas”, exemplifica, certo de que, “se as pessoas só forem à urgência quando se justifica, os serviços podem funcionar melhor e dar respostas mais rápidas”.

 

O ainda bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, criticou a Linha Saúde 24 por a considerar cara e uma “inutilidade”. O SNS tem capacidade para lidar com todos os doentes sem que haja uma triagem feita por este serviço de teleassistência?

A Saúde 24 existe para apoiar e é desejável até que possa ser a principal porta de entrada no SNS. Muitos países europeus têm linhas desta natureza, que servem para ajudar as pessoas a resolverem os seus problemas, na comodidade do seu lar, seja qual for a hora do dia. A linha nasceu também para descongestionar os serviços de urgência. Em 2016, recebemos cerca de um milhão de chamadas e só 20% das pessoas foram encaminhadas para a urgência.

 

Têm ideia do que fariam as pessoas que vos contactam caso não existisse a linha Saúde 24? É uma das questões que colocam aos utentes.

Mais de metade diz-nos que iria aos serviços de urgência. Nós fazemos avaliações trimestrais. Entre os meses de julho e setembro, (em números redondos) das 40 mil pessoas que nos disseram que iriam à urgência, metade mudou de ideias depois de falar connosco. Desta forma, retirámos 20 mil pessoas da urgência e poupámos dois milhões de euros.

Ao dar a indicação às pessoas de que não é necessário ir à urgência, fazemos aconselhamento de forma a que as pessoas lidem com a situação. Passa muito por medidas que têm a ver com um estilo de vida saudável, como ter uma alimentação adequada, beber bastantes líquidos, fazer exercício físico ou fazer uma avaliação correta da febre, glicémia capilar, por exemplo. É, no fundo, perceber o que as pessoas podem fazer com os seus recursos para responder ao problema que têm. O Paracetamol (Ben-u-ron) é o único medicamento que aconselhamos. Sobre os outros, indicamos como devem ser tomados da forma correta.

 

O diretor-geral de Saúde revelou que o Estado paga 6,53 euros por cada chamada para a linha Saúde 24. Parece-lhe um valor adequado tendo em conta o trabalho que desempenham?

É importante porque acrescenta valor. A nossa avaliação é realizada através de algoritmos e o facto de os utentes nos ligarem permite que saibamos dar uma indicação para ir ao serviço de urgência mais adequado. Quando lá vai, como já foi atendido por um serviço do SNS, não deve pagar taxa moderadora.

 

Prende-se com o facto de já ter sido feita uma triagem?

As triagens da Saúde 24 e das urgências ainda não estão harmonizadas. Uma coisa é ao telefone nós efetuarmos uma triagem a outra é ser verificada a prioridade em presença. Se o encaminhamento for o correto, o utente vai à urgência mais adequada para responder ao seu problema. Temos um estudo que indica que quem nos liga tem oito vezes mais probabilidade de ser atendido nas primeiras três horas. E compreendemos que quem contacta a Saúde 24 fá-lo, teoricamente, numa perspetiva de não ir à urgência.

 

Partilha da opinião de que os portugueses recorrem demasiado às urgências, subvalorizando o papel dos cuidados primários?

Sim, partilho. Acho que há um trabalho a fazer, o Ministério [da Saúde] está a fazer esse trabalho no sentido de assegurar melhores respostas nos cuidados de saúde primários. Os cidadãos devem também confiar no seu médico de família e enfermeiro de família, de maneira a que só devem ir à urgência por estrita necessidade. Se as pessoas só forem à urgência quando se justifica, os serviços podem funcionar melhor e dar respostas mais rápidas.

 

Como é que se pode incentivar uma mudança de atitude?

Eu sugiro às pessoas que contactem o seu médico/enfermeiro de família ou liguem para a Saúde 24. É um clique e são atendidas por enfermeiros. Até porque a nossa maior concentração de procura situa-se entre as 17 horas e a 1 hora da manhã, um horário em que os cuidados de saúde primários estão maioritariamente encerrados. Podemos, portanto, ser complementares na resposta às necessidades das pessoas.

 

Vive-se, em determinadas alturas do ano, o caos nas urgências. A resposta encontrada pelo Ministério da Saúde – implementar planos de contingência – é suficiente?

Nalguns casos sim, noutros não, se a procura for demasiado intensa e for uma região em que a atividade gripal (o que está em causa nesta altura) é elevada. Mas o plano de contingência não se aplica apenas às urgências. Nos cuidados de saúde primários, nos ACES, têm sido abertas consultas em tempo mais alargado para observação deste número maior de pessoas que está doente. Se o plano não existisse era muito pior.

Há a necessidade, naturalmente, de todos refletirmos e procurarmos soluções nestes momentos em que existe maior procura. A capacidade interna de cada instituição tem de ser bem aproveitada de maneira a que, ao longo do dia, seja possível uma resposta para consultas que permita atender o maior número de pessoas.

 

O facto de termos tido pessoas 13 horas à espera para serem atendidas no Hospital Amadora-Sintra prova que os recursos são insuficientes, ou não?

Os recursos são sempre finitos, temos de ter essa consciência. E acredito que tudo foi feito para que esse período fosse o menor possível. O que por vezes acontece é que a procura é substancialmente elevada na urgência e não é utilizada a capacidade instalada nos centros de saúde.

 

Prevê-se que a Linha Saúde 24 seja substituída, em junho, pelo Centro de Contacto do SNS.

O concurso internacional está a decorrer e está previsto que se inicie em junho o Centro de Contacto do SNS. É um concurso para três anos num valor de 30 milhões de euros. Neste momento, já há candidatos.

 

Em que se traduz esta mudança?

A mudança consiste em aplicar os serviços já existentes. Iremos ter quatro grandes blocos: serviços informativos, com informações prestadas através de canais diversos; serviços administrativos, para marcação de consultas e exames complementares de diagnóstico; triagem e orientação clínica, que é, na prática, a Saúde 24 (o número mantém-se); e um novo serviço de telecuidados, que consiste em acompanhar idosos ou pessoas que querem deixar de fumar e monitorizar pessoas com doenças crónicas (hipertensão e diabetes…), grávidas e utentes sujeitos a cirurgias em ambulatório. Estes serviços de monitorização são ainda um projeto-piloto.

 

Os utentes poderão contactar a linha espontaneamente ou terão de ser indicados pelos serviços de saúde?

O funcionamento da atual linha Saúde 24 mantém-se. Os idosos e pessoas que queiram deixar de fumar também nos podem contactar, mas as grávidas e utentes que tenham feito cirurgias em ambulatório só contactamos quando a informação nos é prestada pelos serviços de saúde.

 

O que vai acontecer aos profissionais que agora trabalham na Linha Saúde 24?

Admitimos que possam continuar, até porque há uma experiência acumulada que deve ser aproveitada, mas isso tem a ver com o futuro operador [o atual é a PT]. Neste momento, temos uma equipa de 450 enfermeiros distribuídos pelos polos de atendimento de Lisboa e Porto.

Que falhas consegue apontar à Saúde 24 ao longo dos últimos anos?

Sempre que encontrámos dificuldades, procurámos soluções. O INEM tinha muitas chamadas sobre questões de medicação e nós passámos a atendê-las; o INEM tinha muita procura relacionada com os bombeiros e nós passámos a informar o utente sobre os bombeiros mais próximos; nós tínhamos muitos doentes com diabetes, então criámos um algoritmo de diabetes; tínhamos muitos doentes com variação de tensão arterial, foi criado um algoritmo para esse efeito; se soubermos que os serviços estão a deixar de receber informação, nós verificamos se o processo está a correr bem.

 

Como é que está a decorrer esse processo, tendo em conta que o Hospital Pediátrico de Coimbra (HPC) terá estado um ano sem receber informações da Saúde 24?

Isso não é verdade. Nós demonstrámos que a partir do final de abril de 2016 o hospital tinha recebido mais de 1.400 faxes e, desde novembro, já tinha recebido mais de 400 informações por via informática. Isso foi uma situação que não percebemos. Estranhamos que, não recebendo, nunca nos tivessem contactado, ao contrário do que fazem os outros serviços. Posso-lhe dizer que o HPC nunca esteve sem receber informação. Isso já foi desmentido pela própria entidade.

 

 

“Os enfermeiros nem sempre são reconhecidos pelo trabalho que realizam”

 

O recém-eleito bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, elogiou, em entrevista ao Notícias ao Minuto, Adalberto Campos Fernandes por colocar o foco naqueles que trabalham no SNS, como é o caso dos enfermeiros. Partilha desta opinião?

Sim, partilho da opinião, porque todos os profissionais são necessários e o bem mais importante que o ministério tem são as pessoas. Essa é uma tónica importante. Naturalmente que as preocupações do ministro são sempre encontrar as melhores respostas. Estou convicto de que qualquer pessoa nessa posição está preocupada com o bem público, e o bem público é prestar o melhor serviço ao cidadão.

 

O Orçamento do Estado para a Saúde é suficiente para fazer face a todos os problemas?

É reconhecido que o orçamento deveria ser maior, mas vivemos num período em que, saindo de uma crise económica, vamos ter de nos adaptar, criando as melhores respostas com os mesmos recursos, tendo em conta a capacidade financeira disponível. Acima de tudo, temos de pensar que com melhor organização é provável que consigamos dar melhores respostas aos cidadãos. Isso é sempre possível, na medida em que a melhoria contínua é uma ideia que deveremos ter sempre presente.

 

O que é que considera que tem sido deixado para trás?

Eu sei as dificuldades que existem, compreendo que os processos não são tão rápidos quanto queríamos, mas também sei que, desde que os profissionais trabalhem em equipa e complementaridade, podem dar mais e melhores respostas aos cidadãos. Sou da opinião de que o aproveitamento das competências dos enfermeiros pode ser uma alavanca para melhores respostas em saúde.

 

Tem havido reivindicações por parte dos enfermeiros e houve casos de profissionais a receber menos de cinco euros por hora.

Em relação aos vencimentos, não compreendo que os meus colegas estejam a receber valores a rondar os quatro ou cinco euros à hora. É importante que um médico esteja disponível para tratar as situações (o seu papel é inquestionável), mas os enfermeiros deveriam poder ajudar mais naquilo que é a prevenção e têm de estar disponíveis para isso.

 

O que sente, de certa forma, é que os enfermeiros são subvalorizados em Portugal?

Não é uma questão de ser sub ou sobrevalorizado, mas os enfermeiros devem ter o reconhecimento que lhes é devido. Os enfermeiros nem sempre são reconhecidos pelo trabalho que realizam. Há, no entanto, políticos que reconhecem e valorizam essa condição e fazem apostas muito concretas. Verifico com agrado que é uma preocupação atualmente. Na minha opinião, houve anteriormente uma postura positiva que não foi suficiente.

 

O Sindicato dos Enfermeiros estima que, nos últimos cinco anos, mais de 13 mil profissionais tenham emigrado. Lá fora, os enfermeiros portugueses são muito valorizados.

É verdade. Eu já questionei: Porque é que os enfermeiros são tão valorizados no estrangeiro e em Portugal não o são? Por isso é que digo que devem aproveitar-se as suas competências. É também necessário que os enfermeiros melhorem a sua autoestima. E o dinheiro ajudaria. Mas se pudessem ter uma prestação que lhes permitisse dar outro tipo de respostas, penso que eles ficariam um pouco satisfeitos.

 

No seu caso, alguma vez pensou emigrar?

Eu sou um enfermeiro da velha geração, tenho quase 40 anos de exercício. Essa questão no passado não se colocava. Compreendo a atitude dos meus colegas que sentem esta necessidade, tenho pena que assim seja. Penso que isso deveria levar a um olhar sobre a política de saúde em sentido global.

Lamento que façamos uma formação de tão grande qualidade em Portugal e depois seja aproveitada por outros, quando nós temos essas carências. Também percebo que há uma condição económica que pode não ser favorável.

A bastonária da Ordem dos Enfermeiros denunciou recentemente a situação de doentes privados de alimentação e medicação numa unidade de saúde do SNS. Acredita que casos como este se passem em unidades de saúde em Portugal?

Não acredito, como não acredito que se tenha passado nessa situação. Se bem sei, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) já veio referir que a situação não ocorreu. Não acredito que um enfermeiro, sabendo que não tem medicamentos ou alimentação, não tenha reportado a situação internamente. E também não é assim que se melhora aquilo que é a nossa imagem social na saúde. Não o faria desta forma, criando alarmismos. A situação deveria ser reportada internamente a quem de direito e, se ocorresse, denunciada.

 

Acredita que há pessoas em Portugal que prescindam de ir ao médico por falta de condições financeiras?

Admito que sim. Nas condições económicas em que vivemos, haverá dificuldades para muitas pessoas. Por outro lado, acredito que o SNS tem encontrado formas de assegurar os cuidados de saúde às pessoas que deles necessitam. Há pessoas que podem não estar a comprar todos os medicamentos, mas quando o SNS tem conhecimento intervém para ajudá-las.

 

Notícias ao Minuto; Rubrica ‘Vozes ao Minuto’
Entrevista ao Coordenador da Saúde 24 a 31 janeiro 2017